Deve-se dizer (e escrever) “tinha feito” ou “havia feito”? “Tinha ido” ou “havia ido”? Existe diferença entre “havia” e “tinha“?
O sentido é o mesmo: significa a mesmíssima coisa dizer que alguém já “tinha almoçado” ou que já “havia almoçado“. Mas muita gente acha (e ensina, errado, por aí) que “havia” seria uma forma mais antiga, tradicional, culta, literária, enquanto “tinha” seria uma forma mais popular, moderna, mais informal. Absolutamente errado.
A verdade é que, das duas, a forma tradicional portuguesa foi sempre a que usa o verbo “ter” com particípios. Nos primeiros séculos da língua portuguesa, essa era, aliás, uma das marcas que a diferenciavam da língua espanhola: em português, a regra era o uso do verbo “ter” com particípios (tinha amado, tínhamos sido), enquanto o espanhol exigia o verbo “haver” (había amado, habíamos sido).
Note-se que, com outros tempos verbais, até hoje em português só usamos o verbo “ter”: no passado, por exemplo, “tenho comido”, “(tu) tens cantado”, enquanto em espanhol o que se usa é o verbo “haver” (“he comido“, “(tú) has cantado“).
(Em galego, nossa língua-mãe, até hoje o eventual uso de “haver” com particípios é considerado um “castelhanismo” – um erro causado por influência do espanhol. Na língua galega ainda se usam as formas sintáticas – “eu comera”, “eu fizera”, “eu fora” -, que dela herdamos e que equivalem a “tinha comido”, “tinha feito”, “tinha sido”.)
Para comprovar que as formas com “tinha” são mais tradicionais e clássicas em português que aquelas com “havia”, basta abrir Os Lusíadas, de Camões, obra na qual se contam mais de 60 particípios com “tinha” (“o capitão tinha mandado“, “o mal que em Moçambique tinham feito“, “Meio caminho a noite tinha andado“) e um único com “havia” (“do licor que Lieu prantado havia“).
O mesmo se vê nas obras de Machado de Assis, três séculos mais tarde, em que também os particípios com “tinha” são muitíssimo mais numerosos que os com “havia“. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, lê-se, por exemplo: “Tinham-me dado razão os acontecimentos“; “Não tinha almoçado“; “As bexigas tinham sido terríveis“, “As bexigas tinham-lhe comido o rosto“, “Tínhamos falado na prata“.
O que facilmente se constata nas ruas de qualquer cidade brasileira ou portuguesa, portanto – que é muito mais comum o uso de “tinha” do que o de “havia” – não é, portanto, algo “moderno”, “novo”, “informal” ou “popular”: é a continuação do que sempre ocorreu em português, formal e culto, desde o surgimento da língua.
Ou seja: ainda que também sejam hoje consideradas corretas, em português, formas como “Havia feito” e “havíamos ido“, as formas mais tradicionais e conservadoras em português são as com o verbo “ter“: tinha feito, tínhamos ido, etc. De modo que quem se força a escrever sempre “havia” em vez de “tinha“, achando estar “escrevendo chique”, na verdade está empregando uma construção originalmente estrangeira, que nada tem de mais elegante nem de melhor do que a corretíssima (e portuguesíssima) forma “tinha“.
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Ufa! Que bom ler isso! Fazia tempo que eu pensava em escrever sobre isso!
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Mais de 100 compartilhamentos só no Facebook, em 24 horas. Parabéns.
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Algum comentário sobre o pretérito mais-que-perfeito? Parece-me cada vez mais esquecido no Brasil.
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E que usades no Brasil?
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Embora acredite já ter visto o assunto discutido em outro artigo, o Anônimo se refere apenas ao mais-que-perfeito simples, que caminha para tornar-se um tempo literário (se é que já não chegou lá); o composto se usa normalmente, como nos exemplos que aparecem na postagem.
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Sim, referia-me ao mais-que-perfeito simples.
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Caro,
Não sei se já escreveu a este respeito, mas, se o não fez, gostaria de ler algo seu a respeito do verbo ter empregado com a acepção de haver existencial. Como se deu essa evolução na nossa língua? É uso arcaico? Se não, de quando vem? Hoje, em textos monitorados, pode-se usar sem receio? (Acho que a resposta à última pergunta ainda é não, infelizmente)
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Não viaja na ideia, amigo.
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Cala a boca.
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Ter igual a possuir. Haver +ou- igual a existir. Portanto, havia uma pedra no meio do caminho, para mim, soa melhor. Esta é a minha opinião; respeito as demais.
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Valeu pela excelente explicação.
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